quinta-feira, 26 de abril de 2007

Salute!

Tenho sido um leitor assíduo desde quando aprendi a ler. Isto se deu em meus quatro anos de idade.
Fui iniciado nos mistérios das letras por minha mãe, que foi minha primeira professora e, por conseqüência, minha alfabetizadora.
Aos cinco freqüentei a mesa de Dona Dirce, professora particular que estendeu meus conhecimentos, dando-me lições de gramática, matemática e outras matérias que compunham o currículo escolar da primeira série do ensino fundamental, pois na época não permitiam o acesso de pessoa tão precoce na escola formal, havia a necessidade de se ter sete anos completos para ingressar.
Ao ingressar na escola, um colégio público, após licença especial, entrei aos seis anos de idade, já na segunda série. Para mim não houve problema maior, pois já vira parte da matéria com a minha ex-professora. Assim, prossegui até completar os estudos, se acaso realmente se completa algo em termos de estudo, já que até os dias presentes continuo um estudante de tudo o que me seja de interesse.
Por ser um leitor precoce e ávido por leitura, li muitos livros, chegando a devorar um volume diariamente. Quantos personagens, histórias, conhecimento, reflexões, desfilaram frente à minha visão! Privilégio que agradeço à vida por me ter proporcionado.
Percorri páginas admiráveis, como as escritas pelos grandes autores: Dante, Shakespeare, Goethe, Hugo, Tolstoi, Dostoievski, Zola, Assis, Euclides, e tantos outros, que necessitaria de bobinas e mais bobinas de papel para grafar seus nomes.
Ser leitor é, antes de tudo, ser um apaixonado crônico e incurável pela mente alheia, pelo seu conhecimento, por suas emoções e sentimentos. É desejar unir-se, fundir-se à alma de outro. Padecer e superar com seus personagens, envolver-se em suas tramas, rir e chorar as vidas que emergem das letras. Enfim, é viver navegando no fluxo das palavras por eles grafadas.
A escrita é o fenômeno universal que define com maior precisão o limite entre o primitivo e o civilizado. Mais do que um amontoado de conjuntos arquitetônicos, uma civilização é aquela junção de seres que produzem conhecimento e preservam-no através da escrita.
Neste mundo multimídia em que vivemos, com todos os seus esplêndidos recursos, com sua grafia eletrônica, corremos o risco de termos a nossa memória destruída por um pico elétrico, ou pela falta de energia, coisa que não ocorre com a escrita em papel, que apesar de certo grau de vulnerabilidade, ainda é menos suscetível do que os meios eletrônicos, dependentes da energia elétrica para seu funcionamento.
Fico temeroso por todo o conhecimento que pode ser perdido caso não se possa mais contar com a eletricidade. O analógico ainda é menos propício a este tipo de situação do que o meio digital. Oxalá, não nos falte os meios para acessarmos o que viemos produzindo.
Não obstante nem tudo o que se escreve, nem todo o conhecimento entre tudo o que se publica, ou se acessa, de fato tem valor. Há muito lixo, sempre houve. Talvez, hoje, devido às facilidades tecnológicas, tenha havido um aumento extraordinário do volume de material esdrúxulo. Contudo, de certa forma, nunca se escreveu tão generalizadamente em toda a história humana. Vivemos o período barroco da escrita universal, com todas as suas idiossincrasias e paradoxos, onde o indivíduo ao recém descobrir a sua potencialidade, ainda mal coordenado e equilibrado, atreve-se a dar os primeiros passos no campo do conhecimento e da escrita.
Por aí vemos textos muito mal escritos, repletos de erros, superficiais, frívolos, enfim, puro lixo, mas têm eles a sua importância, pois ensaiam um futuro de seres criadores.
Muitos lhes criticam, simplesmente porque não entendem que tal período é passageiro e, até certo ponto, é bom que tenha vindo tal período, pois desmistifica quem escreve e sinaliza que “todos” podem gerar conhecimento, “todos”podem escrever e não somente uma classe de semi-deuses alçados a gênios literários. Os mitos estão ruindo por terra, seria bom nos acostumarmos o quanto antes.
O conhecimento é intrínseco. As coisas só nos auxiliam a revelá-lo à nossa consciência.
Um brinde, moderado, mas um brinde à nova safra de leitores e autores!

S. Quimas

terça-feira, 24 de abril de 2007

Alegoria Náutica



Desde criança tenho uma profunda admiração pelo mar. Aliás, por mim viveria o restante de minha vida ouvindo o marulho das águas em alguma praia do Nordeste Brasileiro. O mar me fascina a tal ponto que uma das minhas aspirações mais forte — e talvez mais louca — é permanecer dentro de uma tempestade, a beira de um abismo e ver o bater das ondas encapeladas nos rochedos abaixo de mim.
Contudo, não é exatamente sobre o mar em si que desejo escrever, mas sobre as embarcações que lhe navegam, de um navio, uma alegoria náutica, não um barco qualquer.
Este transatlântico de dimensões colossais se chama Mundo e ele navega em um mar muito especial denominado Espaço Sideral. Sua velocidade de cruzeiro é de muitos milhares de nós. Ele possui uma cabine de comando e acomodações de primeira classe, classe turística e para a tripulação. Possui também porões, que dizem ser infestados por ratos. Há outros setores neste navio, como cozinhas, lojas, salões, etc.
No comando, o capitão e os navegadores controlam o curso da embarcação e a administração do navio. São eles que determinam a rota, fazendo com que o leme dirija o navio para o objetivo que determinam. Em toda a história desta embarcação foram criadas oportunidades para que o Mundo chegasse a portos mais auspiciosos, porém há muita divergência entre os tripulantes que dominam a cabine de comando. As suas contendas são tão ferozes que chegam a bater-se entre si e muitas vezes a se matarem. Acabam, com isto, comprometendo o bom curso da viagem e atingindo a todos os passageiros da nave, transformando-a em um barco de guerra que se autodestrói.
Não toleram amotinados, que são rapidamente contidos pelos marinheiros responsáveis pela segurança do navio. Estes marinheiros deveriam preservar a integridade dos embarcados, mas acabam sendo destacados para reprimir os que fazem voz contrária às decisões do comando.
Os oficiais de bordo não ligam se agem em prejuízo daqueles que com eles navegam e nem se as suas decisões precipitam o declínio do navio. Suas decisões são para eles sagradas e não se admite controvérsias. Afinal, pensam, não são eles superiores a todos, então por que ouvir a outras vozes? Por que dar crédito a quem não tem o poder de comando? São irredutíveis.
Geralmente, aqueles que são promovidos dentro da tripulação e alçam ao comando, mas que discordam dos mais graduados, são também eliminados, ou recebem sanções que lhes dificultam as ações e lhes impedem o progresso.
Os oficiais superiores vivem confabulando e muitas vezes dão aparência que vão decidir em favor do restante dos embarcados, mas no fundo só decidem em prol de si mesmos e espargem migalhas em benefício destes últimos.
Em conivência com as decisões tomadas pelo comando e regalados em seus banquetes com o que de melhor pode haver, estão os passageiros da primeira classe. Estes se submetem solicitamente ao jugo do comando e partilham com ele suas decisões, se influenciado mutuamente. São eles os perpetuadores e mantenedores das regras que dirigem as ações do comando.
Esta classe não freqüenta o convés das demais e muitas vezes ignoram os clamores e burburinho que vêm de baixo, tendo-os como próprios de gente sem formação e insensata.
Adoram desfilar ostentando suas riquezas e esnobando a quem não pertença a seu seleto grupo. Consomem e desperdiçam muito, pois não relevam a finitude dos recursos de bordo, já que a sua posição e poder financeiro lhes entorpecem as mentes. São amnésicos em relação aos problemas alheios. Mais certamente, egoístas.
Também são dados a colecionar títulos honoríficos e dão importância exacerbada aos nomes de família e posses. Só toleram das outras classes aqueles que lhes servem. Uma questão que no momento não tem melhor solução, mas que deverá ser sublimada pelos avanços da informática e da robótica.
A classe turística é a menos confortável, pois as cabines são estreitas e o serviço menos cuidado devido à superlotação. Os passageiros desta classe operam como formigas e raramente desfrutam de bom lazer. Suas vestes se assemelham a uniformes, pois somente compram roupas produzidas em massa. Exclusividade é um verbete desconhecido destes passageiros.
São mais vulneráveis, já que sua alimentação nem sempre é a mais adequada, portanto adoecem com mais facilidade. No convés da classe turística, poucas são as enfermarias e o atendimento torna-se precário. Os médicos, além de insuficientes, ganham uma fração infinitesimal do que ganham aqueles que atendem no convés superior. Assim, devido à remuneração inferior e à quantidade temerária de pacientes, trabalham aborrecidos e têm um tempo exíguo para o atendimento.
O trabalho dos passageiros da classe turística é que dá sustentação à primeira classe e ao seu hedonismo. Apesar de embarcados no mesmo navio, não lhes é dado acesso ao outro convés senão para que dêem suporte aos passageiros superiores.
A parte mais obscura do navio são seus porões. Neles viajam todo o tipo de clandestino. São infestados por ratos e outras criaturas que comprometem o ambiente, tornando-o extremamente insalubre e impróprio.
Os clandestinos são conhecidos por todos, mas vilmente ignorados. Assim, reina nos porões a violência, a doença e a fome. Eles são os parias da embarcação e vivem submetidos à sombra constante, sem qualquer acesso às luzes dos conveses acima.
São numerosos e deles se comenta muito, mas nenhuma providência se toma em relação a restaurar-lhes a dignidade.
Numa descrição sucinta, assim é o nosso navio Mundo. Uma nave cheia de desigualdades e extremos. Entretanto, descuidando-se de sua navegação, infringindo-lhe sucessivas avarias e tratando com descaso os seus passageiros, vê-lo-emos ir a pique. E, neste dia, junto com ele, o comando, a primeira classe, a turística, os clandestinos e todas as outras criaturas do porão. Nada e ninguém se salvarão.

S. Quimas 


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segunda-feira, 23 de abril de 2007

O Game (Conto)

— Diga a Exu, que não se briga com o pai.
Aquela frase dita pelo caboclo ficou na cabeça da mulher durante semanas, mas como nada aconteceu de especial desde a última sessão no terreiro, acabou esquecendo o aviso que lhe havia dado.
Norma era uma mulher simples, lavadeira de profissão e que havia sustentado a ela e três filhos desde a morte do marido, vítima de uma bala perdida durante a tomada de uma boca-de-fumo por um bando inimigo de outro morro.
Diziam que Antonio era avião, mas ninguém conseguiu provar. Passava o dia enchendo a cara num boteco pouco depois do início da favela e só ia para casa quando já mal se agüentava sobre as próprias pernas. Não era um mau homem, pelo menos não maltratava a mulher e os filhos. Com o que sobrava da bebida, comprava o que podia para dentro de casa. Norma não reclamava, conformava-se.
Ela, com as lavagens de roupa, ganhava a maior parte do sustento da casa. Já vivia assim há dezesseis anos. Casara-se com Antonio, pois estava grávida do filho mais velho. Só parou de procriar porque foi acometida por uma infecção e teve que remover o ovário e as trompas. Levava uma vida sacrificada, mas não era infeliz. Resolvia seus males e suas angústias nas rodas de samba e nas curimbas no terreiro de Oxossi. Tinha muita fé nos caboclos.
— Mãe? Tô indo pra escola. — Disse da porta, Zé, o filho mais velho.
— Vai com Deus, que Oxalá te proteja. Vê si não chega tarde pro almoço. — Disse a mãe despedindo-se.
— Chego não.
Zé não era um menino sem inteligência e isso lhe valeu uma bolsa de estudo em um colégio particular. Tirava quase sempre notas excelentes, mas nos últimos meses vinha caindo sua performance escolar. Havia dias que matava aulas para poder jogar numa Lanhouse na cidade. Os professores pensavam em enviar um recado para a mãe caso ele continuasse com as faltas. Temeroso, Zé evitava gazear, mas mal saía da escola, corria para a casa de jogos, muitas vezes atrasando-se para o almoço. Justificava-se para a mãe alegando que se distraíra batendo papo com os amigos, ou dizendo que fora à biblioteca fazer um trabalho antes de regressar ao lar.
Aquele dia não agiu de maneira muito diferente. Tendo realizado uma prova nas últimas aulas, saiu com quarenta minutos de antecedência e sem pestanejar foi direto para a Lanhouse.
— E aí? Beleza? — Zé perguntou, cumprimentando um de seus amigos na casa de jogos.
— Beleza. Tá pronto pra levar uma surra? — Disse o outro provocativo.
— Ih! Aí, qual é, meu? Num tá reconhecendo o rei das parada, não?
— Podi crê. Ma quero vê nas máquina. — Atreveu-se o companheiro de game de Zé.
— Então vamu lá, que vô ti mostrá quem manda no pedaço.
— Vamu lá.
Os dois entraram na Lanhouse e antes de chegarem ao balcão para pagarem o seu tempo, notaram a presença de um estranho, um rapaz ruivo de uns dezesseis anos, trajado de bermuda e tênis de marca e vestindo uma camisa vermelha com um símbolo em preto.
— E aí? Tu conhece a figura? — Perguntou jocosamente Zé ao amigo.
— Nunca pintou no pedaço aqui não. — Disse o outro. — Deve ser um desses mauricinhos que cansaram de jogar em casa e vem aqui pra tomá uma surra.
— É isso aí. Vamu detoná com o figura.
Ambos bateram os punhos rindo.
Após pagarem pelo tempo de uso do computador, sentaram-se junto a duas máquinas contíguas. Antes deram uma última olhada para o ruivo e fizeram um gesto obsceno, indicando que se uniriam a fim de derrotar o rapaz.
Iniciaram as máquinas e entraram na partida em rede. Ambos eram muito hábeis no jogo e levaram pouco tempo para destruir todos os obstáculos da partida. Agora só faltava o personagem virtual do ruivo. Conseguiram encurralá-lo em um prédio semidestruído.
“É agora que o mané vai levá bomba!” — Pensou o amigo de Zé, antes de ver o seu personagem virtual ir pelos ares com o arremesso de uma granada. Inconformado, bateu com os pés no chão e retirou os fones de ouvido, deixando-os sobre a mesa, frente ao monitor.
O amigo notou o fato e redobrou o cuidado ao atacar o soldado do ruivo. Havia um corredor extenso entre a posição de seu soldado e a entrada do lugar onde o avatar do ruivo, permanecia à espreita esperando a chegada de Zé.
Zé resolveu entrar correndo pelo corredor disparando rajadas com sua arma. Quando o seu avatar alcançou o portal do apartamento onde se ocultava o inimigo, viu-se envolvido em uma cortina de fumaça, provocada por uma granada de gás e sem visibilidade, acabou sendo destruído por uma rajada do inimigo, que se posicionara colado à parede onde se encontrava a porta.
— Droga! — Xingou em voz alta. — Que merda!
Deu uma olhada rápida para o ruivo, que sorria discretamente, mas que não encarou o seu adversário.
— Vamo nessa, Zé! — Disse o amigo. — Hoje já vi que não vai dá pra nós.
— Vamo nessa...
Saíram dali e seguiram para as suas casas.
Em casa, Norma aguardava o filho com o almoço sobre o fogão.
— Demorou! — Disse ela ao filho.
— Preferi fazer um trabalho antes de vir pra casa. — Disse ele mentindo.
— Agora troca a roupa, enquanto esquento o almoço.
Zé foi para o quarto que dividia com os irmãos e tirou a roupa da escola. Sempre se sentia mal por mentir à mãe, mas não podia evitar. Às vezes batia com a cabeça na parede, talvez pensando em chacoalhar o cérebro e organizar as idéias. Nenhuma diferença resultava, só a testa vermelha.
Guardou o uniforme e foi para a mesa almoçar. Comeu sem dizer qualquer palavra e a mãe muito ocupada não percebeu o silêncio.
Após comer, pegou o prato e o pôs sobre a pia. Deu meia-volta e se retirou para o quarto. Deitado, ficou pensando na vida e sem perceber adormeceu.
Foi acordado pela mãe, que ouvira do tanque o delírio do filho.
— Acorda, menino! — Disse Norma, sacudindo de leve o braço do filho adormecido. — Não faz bem dormir logo depois que se come. Causa pesadelo.
Acordou assustado e custou a reconhecer a imagem da mãe ao seu lado na cama.
— O que houve? — Perguntou à mãe, ainda sonolento.
— Você estava sonhando. Tendo um pesadelo. E falava alto. Ouvi lá do tanque. O que você sonhou?
— Não sei. Não me lembro, mas coisa boa não era. — Disse, agora mais desperto.
O restante do dia transcorreu sem nenhum sobressalto.
No dia seguinte, viciado como estava no jogo, retornou à Lanhouse. Lá estava novamente o ruivo.
“Hoje esse maluco não me escapa!” — Pensou, olhando discretamente para o oponente.
Sentou-se à frente de um dos monitores e iniciou o jogo. Era o melhor dos jogadores que freqüentavam a casa de jogos. Raramente perdia. E, mesmo assim, só era derrotado quando resolvia empreender uma jogada muito mirabolante e arriscada, mas quando se conduzia normalmente sempre vencia.
O início do jogo transcorreu com tranqüilidade. Não havia muitos jogadores naquela hora. O ruivo eliminou boa parte e o restante Zé aniquilou sem nenhum pudor. Agora, como da outra vez, restavam somente ele e o ruivo.
Desta feita, evitou os edifícios, resolvendo atrair o inimigo para as ruas da cidade virtual. O ruivo entendeu a estratégia e sem nenhum medo, buscou o adversário pelas ruas. Percebendo a aproximação, Zé resolveu aninhar seu avatar atrás de uns barris, próximo a uma esquina. Não queria combater abertamente.
Estudando a questão, o ruivo resolveu dar a volta e tentar destruir o inimigo pelas costas. Armou-se de uma metralhadora e saiu à caça.
Quase não houve reação. O avatar de Zé, fulminado pelas rajadas, tombou sem mais nenhum ponto de vida.
Ficou imóvel durante algum tempo, sem qualquer reação. Não cria que novamente houvesse perdido para aquele mauricinho, como havia chamado ao ruivo.
Não olhou para trás ao sair, apenas pegou a sua mochila e se retirou da casa de jogos.
“Merda! Aquele mané mifu outra vez.” — Pensou aborrecido.
Quando ia dobrando a esquina da rua onde tomava a condução para casa, alguém o tocou no ombro. Era o ruivo.
— E aí? — Perguntou o ruivo.
— Qual é, cara? Ta pegando alguma coisa? — Respondeu com rispidez.
— Na paz, véio. Só to querendo levar uma idéia contigo.
— Aí, fala rápido que tô com pressa de pegar o busu. — Disse num tom de quem não queria muita conversa.
— Meu, é o seguinte. Tu joga bem, apesar que te ganhei duas.
— Aí, cara, tá a fim de me esculachá? — Zé falou aborrecido.
— Nada a haver, véio. Vim te fazer um convite.
— Convite?
Então o ruivo perguntou a Zé se ele não estava a fim de conhecer um jogo novo. Acabou marcando para segunda-feira, às seis horas, na mesma esquina, pois o ruivo morava em um apartamento próximo ao local.
Durante o resto da semana teve vários pesadelos à noite. Sempre o mesmo sonho, mas não se lembrava de nada ao despertar. Sabia que havia tido um mal sonho, pois acordava agitado e molhado de suor, muitas vezes despertado pela mãe.
Na segunda-feira, ansioso pelo encontro, prestou quase nenhuma atenção às aulas. Passou pela Lanhouse e não entrou, apesar de seu amigo ao ver-lhe, tê-lo convidado. Disse que não e foi embora direto para casa.
A mãe estranhou o horário, porém não fez comentários. Rapidamente esquentou a comida e serviu o filho. Havia muita roupa a ser lavada, pois havia conseguido mais uma freguesa.
Zé não conseguiu fazer os deveres da escola, pois a sua cabeça estava fixa no compromisso que marcara. Às dezesseis e trinta disse para a mãe que ia sair, pois marcara um trabalho com um colega. Mentiu mais uma vez.
Norma lhe disse para não voltar muito tarde. Saiu para tomar o ônibus, levando sua mochila para disfarçar.
Chegou quase meia hora antes do horário do compromisso. Ficou sentado sobre uma mureta que cercava um terreno no local. Cantarolou repetidamente uma música que insistia em seu pensamento.
Às seis da tarde em ponto chegou o ruivo. Após se cumprimentarem, dirigiram-se para o apartamento do rapaz.
— Aí. Fica à vontade. Os coroas foram pra uma parada e meu irmão foi bater uma bola no clube. — Disse o ruivo ao entrar em casa.
— Beleza. — Zé respondeu. — Maneiro teu apartamento.
— É. Quer tomar um refrigerante?
Aceitou.
Foram depois para o quarto do ruivo, onde estava o computador.
O ruivo então falou:
— Aí, vamu fazer o seguinte: vou te mostrar o jogo e depois vamos disputar uma partida. Vou para o quarto do meu irmão e a gente joga em rede, como na Lan. Beleza?
— Tranqüilo.
Assim, o ruivo inicializou a máquina e abriu o jogo.
— Cara, sinistro esse game. — Disse Zé admirado.
— O melhor, véio. — Retrucou o ruivo.
— Aonde tu arrumou esta parada? Nunca vi esse game.
— Num site de download, na Internet.
O jogo com belos gráficos em 3D, consistia na batalha entre dois adversários. Um dos adversários liderava um grupo de guerreiros celestes e o outro a guerreiros infernais. A princípio jogaram no modo de aprendizagem, para que Zé aprendesse os macetes principais do jogo.
— Game maneiro, véio! — Exclamou Zé.
— Agora vamos fazer o seguinte: tu fica aí na minha máquina, que eu vou pra do meu irmão. Então vamu vê se você aprendeu legal o game.
— Falô, véio! Eu posso perder a primeira, pois num to acostumado com o game, mas você vai suar pra ganhá.
— Vamu vê. — Disse o ruivo indo para o outro quarto.
Jogaram durante mais de uma hora. Por ser iniciante, Zé não conseguiu vencer o adversário, mas, como disse, deu trabalho ao ruivo vencer a partida.
— Aí, véio, tenho que ralá. A velha fica preocupada se chego tarde. — Disse Zé se despedindo. — Mas se tu topá, a gente joga mais vezes.
— Tranqüilo, véio. A gente marca. Falô!
— Beleza, então.
Zé foi para casa. Chegou mais de nove horas. Norma perguntou se fizera o trabalho. Disse que estava tudo certo. Jantou e foi ver televisão.
Naquela noite novamente teve pesadelos. Como sempre nada lembrava depois de acordar.
A mãe na manhã seguinte disse que era melhor o rapaz procurar um centro e fazer um descarrego. Disse a ela que faria isto e depois foi para a escola. Neste dia não encontrou o ruivo, apesar de tê-lo procurado na Lanhouse. Queria jogar aquele jogo novamente.
Não entrou na casa de jogos, pois depois de jogar com o ruivo, não achou mais interessante os jogos da Lan. Além disto, não havia adversário à sua altura. Ganhar sempre já não o excitava.
Foi para casa.
Passaram-se uns poucos dias e encontrou o ruivo na saída da escola. Ele lhe esperava.
— E aí, véio. Tá a fim de perder mais uma? — Provocou o ruivo.
— Tá na vantagem porque joga o game há mais tempo. Quando? — Perguntou.
— Que tal na sexta à tarde?
Marcaram para as seis novamente.
— Tua família nunca tá em casa? — Zé perguntou curioso ao chegar na casa do companheiro de jogo.
— Num é isso. Prefiro jogar quando todo mundo tá fora. Não é melhor assim? A gente joga tranqüilo e posso usar a máquina do meu irmão e jogar com você. Melhor que jogar contra o computador.
— Certo. Então vamu lá. — Disse Zé, ansioso por começar o jogo.
Distraído, jogou até um pouco mais tarde e saiu da casa do rapaz ruivo por volta de umas nove e meia.
— Meu, minha mãe vai me matar. — Disse se despedindo do ruivo.
— Véio, diz pra ela que o busu quebrou. Ela não vai pilhá contigo.
— Vou falar. Aí, valeu.
— Na próxima, vamu jogá no modo real. — Afirmou o ruivo.
— Modo real? Quê que é isso? — Zé perguntou curioso.
— Na próxima te explico.
— Então, falou! Vamu vê qual é.
Em casa contou a mentira para a mãe, que aceitou a conversa do ônibus quebrado. Teve pesadelos a noite toda.
Passou mais de uma semana e o rapaz ruivo não deu a menor notícia. Resolveu procurá-lo em seu apartamento depois das aulas.
Tocou o interfone várias vezes sem obter nenhum resultado.
“Tá todo mundo fora.” — Pensou frustrado. — “Volto na segunda.”.
No sábado à noite a mãe lhe chamou para ir ao centro de umbanda. Disse que não dava, pois estava com uma diarréia forte. Antes de sair, a mãe fez um chá. Tomou e foi se deitar.
No centro, o caboclo chamou a mãe e disse a mesma frase que havia dito na sessão anterior. A mãe disse que não entendia o que queria dizer aquela frase: “Diga a Exu, que não se briga com o pai.”.
O caboclo disse-lhe que Exu era o santo da coroa de alguém ligado a ela e que essa pessoa corria risco.
Pensou no filho. Ficou preocupada.
Na segunda-feira passou o defumador na casa e acendeu uma vela para o anjo da guarda do filho. Rezou muito, pedindo proteção.
Neste dia, novamente depois das aulas, Zé foi procurar mais uma vez o rapaz ruivo. Desta vez teve sorte, pois ao chegar ao edifício encontrou-o logo na entrada, chegando de volta em casa.
— E aí, véio? Michou a parada? — Perguntou ao ruivo.
—Nada, véio. Beleza. Tava muito ocupado, por isso não te dei idéia. Vamu joga mais tarde?
— Tá marcado. Às seis? — Perguntou confirmando o horário.
— Às seis. Marcado.
— Valeu. — Disse Zé se despedindo.
Quase cinco horas se despediu da mãe. Esta teve um mal pressentimento. Disse a ele que tomasse cuidado. Falou-lhe o que lhe havia dito o caboclo. Zé assentiu. Saiu para pegar o ônibus. Chegou ao destino dez minutos antes da seis horas.
— E aí? Vai me mostrar como funciona esse modo real? — Zé perguntou ansioso ao ruivo.
— Sei não, véio. Você ainda é novato no game. — Disse o ruivo.
— Ah, qual é, véio? Tá me sacaneando?
— Tá certo. Vamu lá!
Sentaram-se respectivamente cada um à frente de suas máquinas. Carregaram o jogo.
O ruivo gritou do outro quarto:
— Tá vendo uma chave aí à esquerda, no alto da tela? Clica nela.
— Falou. — Respondeu Zé.
Neste dia Zé não voltou para casa. Dias depois foi dado como desaparecido pela polícia. Ninguém soube do seu paradeiro. Ninguém também viu mais o ruivo. O edifício onde ele morava, estranhamente era um edifício abandonado que estava marcado para demolição. Já não era mais habitado havia anos.
No modo real, o jogo virava realidade e Zé foi arrastado para a dimensão dos anjos e demônios. Ainda continua jogando nos campos de batalha.

S. Quimas 

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quarta-feira, 18 de abril de 2007

A Corrida de Táxi (Conto)

O táxi havia parado no sinal e o homem no banco traseiro, advogado conhecido na cidade, batia com a ponta dos dedos de uma das mãos sobre a pasta de couro, demonstrado uma visível ansiedade em chegar ao seu destino.
“Será se não dá para ir mais rápido? E esse maldito sinal que não abre nunca!” Pensava, enquanto olhava o relógio. “Acabo perdendo a hora do banco”.
Enquanto isso, o motorista tentava sintonizar uma estação de rádio.
— O doutor não se importa se eu ouvir o noticiário? — Perguntou o motorista, olhando o seu freguês pelo espelho retrovisor.
— É claro que não, logo que eu chegue ao banco em tempo. — Disse um pouco asperamente, tomado pelo nervosismo.
Mesmo com o ar-condicionado ligado, de vez enquanto corria-lhe uma gota de suor, que era prontamente enxugada pelo lenço no bolso do paletó.
— O doutor não se preocupa não, pois se não tiver engarrafado a chega lá em tempo. — Disse o motorista, tentando minimizar o nervosismo do cliente.
— Assim espero.
“Agora à tarde na Glória faz trinta e dois graus”. Falava o locutor do jornal no rádio. “Trânsito lento, com retenções, na Avenida Brasil, sentido Centro-Zona Norte. Na Avenida 1º de Março, trânsito parado devido um acidente entre quatro carros. O nosso repórter...”
A ansiedade aumentava, ainda mais pelas notícias do trânsito e também aumentava o tamborilar dos dedos na pasta de couro.
“Trânsito engarrafado no aterro, nos dois sentidos. Túnel Rebouças... fechado devido a um acidente com um caminhão...”
“Não é possível, logo o Rebouças. O que nós vamos fazer?” Pensou o advogado, agora desesperado, pois o motorista teria que fazer um desvio para evitar o Rebouças e isso alongaria ainda mais o trajeto.
— Doutor eu vou ter que desviar...
“Não, eu não quero ouvir isso”. Pensava, enquanto o motorista ia dando explicações sobre o trajeto que teria que fazer.
— Eu sinto muito, doutor, mas possa ser que o senhor não chegue a tempo. — Comentou o motorista, jogando uma pá de cal no resto da esperança do advogado.
— Mesmo assim, vamos tentar. Eu preciso ir à minha agência ainda hoje, resolver umas questões. — Disse inconformado.
— Então vamos
O motorista fez o mais rápido que pode o trajeto que faltava. Chegaram em frente à agência bancária faltando dois minutos para o fechamento.
O advogado saiu do carro tão apressado que já se esquecia de pagar a corrida. O motorista então lhe grita educadamente:
— Doutor, doutor! Quer que lhe espere?
Voltou-se para trás e viu que esquecia de pagar a corrida. Correu para junto do carro e sacou a carteira, tirando de lá o valor da corrida. Abriu mão do troco e, em disparada, entrou na agência. A porta travou, fazendo com que batesse a testa contra o vidro. Os óculos chegaram a ferir-lhe um pouco o nariz.
Perguntou ao guarda se o banco já fechara. O guarda disse que ainda não e pediu-lhe que se afastasse e voltasse a empurrar a porta com mais delicadeza. Suspirando de alívio o fez.
Com passos rápidos, após atravessar a porta, seguiu para a mesa de um dos gerentes. Esse lhe cumprimentou e pediu que se sentasse.
— Em que posso ajudá-lo? — Perguntou o gerente.
— Vim trazer os papéis do empréstimo...
Não concluiu o que falava. E, antes de ter um ataque, pensou:
“A pasta, a pasta, esqueci sobre o teto do táxi”.
S. Quimas

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Jogo de Dados (Conto)



4 e 1. O circo estava abarrotado de pessoas. Era uma sessão especial, pois estrearia o novo domador, um francês que lidava com tigres. Os animais, quatro tigres albinos do Himalaia, sendo um único macho, já haviam feito sucesso em um outro circo, mas como o domador se desentendera com o dono por questões financeiras, resolveu abandoná-lo. A proposta dos Irmãos Vincenzo era muito atrativa, pois previa uma participação na bilheteria e um fixo.
O burburinho de crianças e adultos subitamente cessou aos primeiros acordes da banda, que anunciavam com toda a pompa a entrada da nova atração.
— Respeitável público. Senhoras e senhores. Jovens e crianças. O circo Irmãos Vincenzo tem o imenso prazer de apresentar uma das maiores atrações circenses de todo o mundo. No nosso picadeiro Monsieur Henri Prescault, o maior domador de todos os tempos e os seus tigres albinos do Himalaia.
Na entrada de Prescault e seus tigres a platéia foi a delírio, aplaudindo efusivamente o domador e os seus animais.
1 e 1. Do lado de fora, devido aquela ser a última cessão, as últimas barracas em atividade já estavam finalizando o expediente.
Todo o dinheiro recolhido era contado e colocado em uma caixa metálica, que era trancada com um cadeado e, depois, etiquetada com o nome e o valor do conteúdo. Então, era entregue no trailer da gerência para ser contabilizado.
— Está preparado? — Perguntou o homem vestido de palhaço para um outro que se trajava de mágico.
— Já desde cedo. O importante é fazermos dentro do tempo cronometrado para que não haja erros. — Respondeu o outro.
— Não haverá. O número será perfeito. — Retrucou o palhaço dando uma piscadela e abrindo um sorriso.
2 e 1. A mulher, seminua estava sentada sobre a cama no trailer, acariciando a cabeça do seu gato persa. Nesse momento entra um homem. Era o mágico.
— Nossa, que cheiro terrível de uísque! — Disse a mulher com a sua voz aguda quase infantil, visivelmente irritada. — Voltou a beber. Não tem jeito mesmo. Uma vez alcoólatra, alcoólatra para sempre.
— Não me aborreça. — Falou o homem asperamente.
— Não lhe aborrecer? Ora, você é quem me aborrece com este bafo maldito.
Aproximando-se da mulher, o mágico a esbofeteia. Neste momento o gato dá um salto e foge pela janela entreaberta do trailer. A mulher desaba e cai deitada sobre a cama. Da sua boca e do seu nariz corre o sangue.
Ele avança mais sobre ela, pondo as duas mãos entorno do seu pescoço e, pressionando com força durante alguns instantes, a enforca.
Vai até a janela, olha para fora e vê que ninguém passava por perto.
“Melhor assim”. Pensa consigo.
Embrulha o corpo da mulher nos lençóis e carrega-o até o carro, depositando-o no porta-malas.
Volta ao trailer, pega alguns objetos, que coloca numa maleta, junto com alguns documentos.
Pega o carro e o estaciona a alguns metros, um pouco além da entrada do circo.
1 e 2. A última caixa é entregue no trailer da gerência. No interior do circo, os assobios e os aplausos se sucedem. Parece que o público se apaixonou pelo número do domador francês.
— Como fomos hoje? — Pergunta um dos Vincenzos ao tesoureiro que abria a última caixa metálica.
— Se o valor da etiqueta estiver conferindo, hoje foi a nossa melhor arrecadação em muitos anos. Sucesso total de bilheteria. Calculado, os espetáculos mais o apurado nas barracas, passam hoje de trinta e cinco mil. — Disse abrindo um largo sorriso.
De súbito, entra no trailer o homem vestido de palhaço. Empunhando uma arma, pede que coloquem todo o dinheiro numa sacola de viagem.
Os outros dois com os olhos arregalados e sem ter o que fazer para se livrar da situação, apenas obedecem.
— Agora o cofre. Abram o cofre e me passem o dinheiro lá de dentro também.
— Não posso. — Diz aflito o contador. — Nós precisamos da chave que está com Giovane.
O palhaço mete a mão em uma abertura na fantasia e saca de lá uma chave presa numa corrente prateada.
— Seria esta? — Diz, sorrindo maldosamente. — Agora vamos. Rápido com isto.
O contador pega a chave que estava com o palhaço e a do outro Vincenzo, que a entrega muito contrariado.
— Você não irá longe... — Disse, sendo interrompido por uma coronhada nas têmporas, que o faz cair desacordado no chão.
— Agora anda. — Grita o palhaço para o contador, que finalmente abria a porta do cofre. — Coloca tudo junto dentro da sacola.
Dá um tiro no rosto do contador, após este colocar o último maço de notas na sacola e ter recuado para junto do outro, estirado no chão.
Dispara mais uma vez, em direção ao irmão Vincenzo, cujo corpo se contrai em um último espasmo.
Entreabre a porta do trailer e verifica se tudo está bem. Sai e toma o rumo dos bastidores da lona.
1 e 1. Encontra-se com o mágico e pergunta:
— Tudo pronto? A minha parte está feita. — Diz, dando um tapinha na sacola abarrotada de cédulas.
— Tudo. Só estou esperando o aplauso final.
— E Lenita? — Pergunta o palhaço.
— No carro. — Diz o mágico sem mais nada revelar.
6 e 6. A explosão foi ouvida por todos dentro do circo e o pânico tomou a platéia, que desesperada com as chamas que vinham desde os bastidores, tomando rapidamente a lona.
Os animais dentro da grade agitaram-se e nervosos, mataram o domador que tentava sair pela porta entreaberta. Para agravar ainda mais, saíram da jaula, atacando várias pessoas, trazendo ainda mais pânico a todos no interior da lona.
As pessoas em fuga desabalada pisoteavam aquelas que tombavam ao chão. Morriam muitas como insetos, sobre os pés das outras. Gritos inundavam o ambiente e a tragédia seguia nefasta.
Alguns funcionários tentavam os primeiros esforços para administrar a situação. Uns gritando num megafone, tentando controlar a multidão, outros o incêndio que se alastrava célere e ainda outros os animais que se debatiam em suas jaulas, ou que circulavam apavorados entre a multidão e as instalações.
Nos limites do circo já se podia sentir o cheiro de carne queimada. Viaturas policiais próximas chegavam, acorrendo ao chamado urgente. Os bombeiros vinham a toda a velocidade pelas ruas, mas como diriam as manchetes do dia seguinte, não conseguiram evitar a tragédia: duzentas e cinqüenta e oito pessoas mortas, muitas por pisoteamento e outras por queimaduras. Mais de quarenta em estado grave nos hospitais e cerca de setenta feridos convalescendo.
Horas depois, no fundo de um precipício com mais de duzentos metros de altura, foi encontrado um carro. No interior, dois homens e uma mulher morta por estrangulamento no porta-malas.
 

S. Quimas 


Daisy (Conto)



O carro estacionou, um Peugeot, e ela fingiu que não percebeu a chegada do motorista. Era prostituta, mas não queria trabalhar hoje. Ele disse-lhe algo e ela apenas sacudiu a cabeça recusando. Saiu em disparada, deixando um rastro de pneus e vociferando impropérios aos quais ela mal ouviu, ou se ouviu, dissimulou, se retirando dali a passos rápidos. Já devia tê-lo feito há mais tempo, mas insistira em tentar ao menos, talvez, um cliente.
Dirigiu-se a um dos bares, não muito longe dali. Entrou e sentou-se em uma mesa, num canto não muito longe do balcão.
— Um uísque... sem gelo.
Reparou que o lugar estava um pouco vazio para uma quinta à noite, dia em que geralmente lotava. Perguntou ao garçom se tinha idéia do motivo da casa estar tão pouco freqüentada naquela noite. O homem lhe disse que também não fazia idéia do que se passava e que, como sabia, às quintas a casa sempre lotava.
Tomou um trago da bebida e tirando um cigarro da bolsa, colocou-o entre os dedos e pediu fogo. Prontamente o garçom acendeu. Entre uma baforada e outra pensou na vida e na dúvida que lhe consumia o pensamento.
Havia recebido uma proposta. A princípio estava inclinada a aceitá-la, porém depois já não estava tão segura de ser algo que realmente lhe trouxesse algum benefício.
— Eu quero apenas que você largue as ruas e venha trabalhar comigo como dançarina na boate. — Disse o senhor calvo vestido num terno caro, mas que lhe vestia muito mal.
— E quanto me paga? — Perguntou.
— Quinhentos por semana e você fica com as gorjetas. — Declarou com um sorriso que deixava aparecer a jaqueta em ouro de um dos dentes.
— Vou pensar. — Disse simplesmente. E voltando-lhe as costas, partiu.
Quando já ia a alguns passos, ouviu dizer-lhe:
— Não demore, pois uma das meninas engravidou e tenho que substituí-la rápido. Uma semana?
Não respondeu e continuou caminhando.
Agia assim, com este desprendimento, que muitas vezes se confundia com uma certa petulância. Era a prostituta mais bonita da área e nunca ficava, quando disposta a trabalhar, sem cliente. Os seus carinhos custavam caro e não saia com cliente por menos de cem a hora. Contudo, queria deixar aquela vida, pois sabia que os anos passariam e com eles a sua exuberância. Precisava fazer caixa e, quem sabe, montar uma loja ou coisa assim.
Tinha economizado algum dinheiro, que tinha investido em parte em alguns fundos de ações. Estes davam sempre um bom lucro, o que arrancava dela sempre um sorriso quando recebia o extrato bancário.
Possuía já quase todo o dinheiro que precisaria para investir numa loja, talvez de roupas femininas, talvez lingerie.
Não tinha filhos. Nunca casara. Raramente namorou. Interessava-se pouco pelos homens e só os tinha amiúde como clientes.
Pediu outro uísque e acendeu mais um cigarro.
O bar gradativamente começou a encher e vez ou outra acenava para um ou outro conhecido. Convidaram-na para uma das mesas, mas recusou, permanecendo sozinha.
Com quinhentos por semana, mais as gorjeta, deveria tirar uns oitocentos por semana. Não era uma perspectiva ruim, pois tinha poucas despesas, só gastando mais devido à necessidade de boas roupas. Para dançar tudo o que menos precisava era estar vestida.
Seria bom também, pois a livraria da necessidade de sair com clientes que muitas vezes tinham hábitos um tanto estranhos.
A casa se encheu e não se confirmou a perspectiva de ser uma noite entediante.
Alguém trouxe um violão e juntaram-se algumas mesas numa roda de canto.
O músico não era ruim e além de tocar bem o instrumento tinha uma voz afinada. Tocou bossa nova e alguns blues. O repertório agradou.
— Por favor, traga a minha conta. — Disse ao garçom.
— Vai logo agora que a casa está animada? — Ele perguntou.
— Amanhã é outro dia.
— E o trabalho na boate? Vai aceitar? — Perguntou o garçom.
— Amanhã vou procurar o dono. Estou inclinada a aceitar.
— Quer dizer que vamos perder a sua companhia aqui no bar? — Indagou sinceramente sensibilizado o garçom.
— Nas minhas folgas virei. — Disse pegando o troco da despesa. — Até mais.
— Até mais.
Despediu-se de algumas pessoas e retirou-se do bar, tomando o caminho de casa.
A polícia não trata com muito carinho problemas com prostitutas, mas Daisy era diferente, todos gostavam dela.
O seu corpo foi encontrado atirado junto ao meio-fio, próximo à faixa de pedestres junto a um sinal. O rosto desfigurado pelo impacto contra o chão. O vestido lavado pelo sangue que brotara em profusão, fraturado o crânio.
Havia sido atropelada. Meses depois descobriram o responsável: o motorista do Peugeot, em vingança.

S. Quimas


Este conto é parte integrante do livro "Contos e Encantos por S. Quimas. Baixe Contos e Encantos gratuitamente.

Maria dos meus sonhos (Conto)

As suas mãos não estavam vazias. Um pouco da terra que cultivara anos a fio pousava sobre a palma da mão espalmada, como se mostrasse ao céu o amor que tinha por seu quinhão de terra.
Trabalhara ali sol a sol, quase todos os dias da sua vida. Desde menino ajudava o pai no trato do campo. Com habilidade, as mãozinhas capinavam as pequenas ervas, limpando o canteiro semeado a pouco havia. A terra fértil produzia muitos frutos, mas rapidamente enchia-se de mato também. Laborava mal nascido o sol e a jornada só se interrompia nas refeições e no adormecer do sol.
Não tinha lido uma letra. Se leu, foi tão pouca que logo se esqueceu. Contudo, sabia os versos do céu e das estações. Não se via um farrapo branco tingindo o azul e adivinhava com perfeição a chuva horas depois. Era preciso na época certa para semear e sempre colhia em abundância. Menos uma vez, quando desconhecendo o que dizia o discurso do tempo, não percebeu que a geada se anteciparia. Perdeu a colheita, mas não se esquivou da esperança e continuou plantando.
Certa feita, quando se retirava da lavoura, tomando a estrada estreita e empoeirada que lhe era caminho para casa, viu no lustro-fusco um vulto que se aproximava a passos curtos e apressados. Pensou que fosse uma aparição e fez por três vezes o sinal da cruz, mas, espremendo os olhos, viu que não era nenhuma assombração. Era Maria.
Naquele momento ainda não lhe conhecia o nome, porém já a havia visto em casa de Nhô Toinho, numa festa de batizado. Não sabia que havia se apaixonado, mas naquela hora sentiu que sim, pois o estômago lhe dera mais voltas depois que viu de quem se tratava, do que antes de saber que era ela que se aproximava na estrada ao anoitecer.
Quase mudo, só pôde dizer um “Noite!”, pelo qual também sucintamente foi correspondido: “Noite!”.
Maria não era dada a muitas palavras e seu recato era fruto da criação rígida que a família lhe impunha. Sua vida, como a dele, perpetuava-se na faina diária. A dela entre a cozinha e o regato onde suas mãos lavavam a roupa da casa. Cedo assumiu os afazeres, pois a mãe ainda jovem encontrou a morte numa picada de cobra. Aos dez anos tornou-se o esteio da casa e alimentava ao pai e a dois irmãos, pois estes cumpriam sua sina na roça de milho. Além da casa, cuidava dos animais: um curral de porcos e um galinheiro, a leiteira Preciosa e algumas cabras. Não era rica, mas nunca conheceu a fome. Tinha com que viver.
Naquele dia na estrada, andou alguns passos e, voltando-se para trás, viu Maria sumir na garganta da noite que vinha rápida. Nunca mais esqueceu aquele momento.
Quando chegou em casa, lavou os pés, as mãos e o rosto, e sem poder comer um naco da broa sobre a mesa, devido à emoção que lhe trancava a garganta, foi-se deitar em sua esteira num canto da casa e sonhou acordado, até que o sono o fez dormir.
Sonhou com Maria e contou para si mesmo histórias de romance e amor. Vestiu-a de noiva e pôs-se ao seu lado frente ao pároco na capela. Jurou-lhe fidelidade eterna e beijou-lhe a face sorridente. Viveu com ela até que no bolo não couberam mais velas. Criou três filhos que se tornaram doutores e lhe deram netos. Assim sonhou.
Um dia o sol cismou e fez real o sonho que sonhara.
Morreu assim, o corpo estirado no chão que cultivou com tanta paixão. Os braços abertos e as mãos espalmadas com um montículo de terra em uma delas. Parecia um cristo crucificado no solo pelo ardor do sol que lhe fustigava a face envelhecida.

S. Quimas

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segunda-feira, 16 de abril de 2007

Inaugurando: Primeira postagem

"A não-violência é a resposta para as questões cruciais políticas e morais de nosso tempo? a necessidade para o homem superar a opressão e a violência se recorrer à opressão e à violência.
O homem deve evoluir de todo conflito humano para um método que rejeite vingança, agressão e retaliação. A base de tal método é o amor."
Martin Luther King Jr.

Hoje estou inaugurando o meu blog aqui no Blogspot.
Não pretendo atualizá-lo diariamente, pois meu tempo é exígüo, mas tentarei, sempre que tiver algo a relatar, ou alguma coisa nova escrita, publicar por aqui.
Como diz o ditado: Seja o que Deus quiser.
Espero que você volte por aqui e me acompanhe.
Shalom, Salam, Paz.